Doce engano

Você não conseguirá pensar decentemente se não quiser ferir-se a si próprio.

(Wittgenstein)

Há situações extremas que, vistas de fora e de longe, parecem-nos – e de fato foram – absurda e inexplicavelmente desumanas. Mas elas não pareceram assim aos olhos de todos aqueles que, de dentro e de perto, as viveram, as justificaram para si mesmos e as perpetraram. Era gente terrível, covarde, assustada e sinistra, porém tão humana quanto qualquer outra gente. A experiência de situações de extrema adversidade na história da humanidade – guerras, fomes, epidemias, hiperinflações, tiranias, pânicos, catástrofes etc. – revela, com raras exceções, comportamentos e traços de caráter que desmentem as ilusões que alimentamos sobre nós mesmos em tempos de paz e normalidade.

A pergunta desagradável é: quantos de nós teríamos sido “os outros”, os inexplicavelmente desumanos, omissos e cruéis? Quantos de nós teríamos agido como eles agiram em circunstâncias análogas? É provável que os mais suspeitos e perigosos sejam, precisamente, aqueles que não têm ou não se permitem nenhuma dúvida. O pior cego é o que está seguro e convicto de que . Não há nada mais fácil do que apontar os erros, preconceitos e fanatismo dos outros enquanto permanecemos cegos e insensíveis para os nossos próprios.

A passagem do micro ao macrocosmo do auto-engano – o fio secreto unindo na mesma trama a realidade individual da parcialidade de cada um por si próprio e a resultante agregada de um mundo estranho e errado – aparece de forma clara e inadvertidamente sugestiva no poema “Viajando num carro confortável”, de Bertold Brecht:

Viajando num carro confortável

Por uma estrada chuvosa do interior

Avistamos ao cair da noite um homem rústico

Solicitando-nos condução com um gesto humilde.

Tínhamos teto e tínhamos espaço e seguimos em frente

E ouvimos a mim dizer num tom de voz árido: “Não,

Não podemos levar ninguém conosco”.

Tínhamos avançado já boa distância, um dia de viagem talvez.

Quando subitamente fiquei chocado com esta voz minha

Com este comportamento meu

E todo este mundo.

O viajante-protagonista olha para trás, reflete e não se reconhece no que fez. Dois momentos, duas vozes: a primeira, que nega ajuda no momento em que a oportunidade de oferecê-la se oferece, e a segunda, que conta o ocorrido e não se reconhece na outra voz. A voz audível, entre aspas no poema, que nos causa repugnância, e a voz silenciosa que narra, expressa remorso, condena este mundo errado e conquista nossa simpatia ao castigar a outra.

O problema, contudo, é a relação no tempo entre essas duas vozes. A situação descrita no poema, cabe indagar, assinala a conversão do viajante? Ela registra a passagem definitiva de uma voz egoísta que morre (a primeira) para uma voz generosa que nasce e toma o lugar da outra (a segunda)? Ou ela ilustra, antes, um padrão de alternância estratégica entre duas vozes aparentemente opostas, mas no fundo siamesas? Até que ponto a comoção sincera e a reflexão sutilmente confortadora da segunda voz garantem que a outra voz foi mesmo silenciada e que, da próxima vez, será diferente?

Nossos sentimentos e auto-imagem têm a propriedade singular de se ajustarem, sem nos darmos conta, às circunstâncias que nos cercam. Mais que fácil, é doce imaginar-se firme, generoso e solidário no abstrato, enquanto a tentação de não sê-lo é remota e o desafio é apenas hipotético. Por que não banhar-se ao sol da auto-aprovação e de uma imagem generosa de si mesmo enquanto a tempestade anda longe? O tempo, contudo, vira. E, quando ele vira – quando a oportunidade concreta por fim se oferece de provarmos na prática que somos de fato tudo aquilo que imaginamos ser -, a voz que ouvimos deixa, com frequência, de ser a nossa. Ações falam. E o que nossas ações falam nem sempre é o que nos acostumamos a ouvir, em silêncio, enquanto o futuro é algo em aberto, a promessa, generosa, e o desafio, remoto.

(Eduardo Giannetti, em Auto-Engano)